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CULTURA PERIFÉRICA E A ILUSÃO DA LEGITIMIDADE: APROPRIAÇÃO E RESISTÊNCIA NO STREETWEAR

IDENTIDADE NACIONAL E A APROPRIAÇÃO CULTURAL: DESCONSTRUINDO A UNIDADE BRASILEIRA

Nos últimos anos, o nacionalismo brasileiro cresceu significativamente, trazendo consigo um forte sentimento de pertencimento ao Brasil. Tanto à direita quanto à esquerda, há diferentes concepções do que significa ser brasileiro, muitas vezes baseadas na ideia de que todos dentro do território nacional compartilham de uma única cultura e isso nos unifica. No entanto, sabemos que essa noção é equivocada: em um país de dimensões continentais, as diferenças entre estados e regiões são imensas, indo muito além da língua em comum. Os modos de viver, trabalhar e consumir variam drasticamente, tornando impossível definir uma identidade nacional homogênea.

Essa ideia de unidade cultural também se reflete na maneira como percebemos as subculturas emergentes no Brasil, especialmente no que diz respeito à estética. Muitas vezes, acreditamos que essas expressões culturais são exclusivamente nossas, como se fossem um território ou um produto que, uma vez desenvolvido ou descoberto, passasse a pertencer automaticamente a todos os brasileiros. Muitas vezes, esquecemos que nenhuma estética se desenvolve isoladamente, sem estar atrelada a um contexto social e econômico. Estilos, vestimentas e símbolos culturais não surgem no vácuo — eles são moldados por realidades específicas, pelas dinâmicas de acesso, exclusão e valorização que uma sociedade impõe. Quando um determinado visual se populariza, é essencial questionarmos quais fatores contribuíram para sua construção e qual o papel das comunidades que o originaram. Ignorar esse aspecto leva à superficialidade, à apropriação vazia e ao apagamento das narrativas que deram vida a essas expressões estéticas. Esse pensamento gera dois problemas principais:

  1. A aversão à figura estrangeira, o "gringo", reduzindo-o apenas à sua nacionalidade e ignorando outros fatores culturais e sociais.

  2. A falta de percepção da nossa similaridades com o outros que estao fora do nosso territorio.

Para ilustrar esse segundo ponto, lembro-me da primeira vez que estive em Marselha, na França. A cidade e seus habitantes me proporcionaram uma sensação de reconhecimento gigante. Os sonhos, ambições, dificuldades e opressões vividas pela classe trabalhadora de lá são incrivelmente similares às da periferia brasileira. Quando um amigo marselhês me contou que seu maior desejo era dar uma casa de presente para sua mãe, ouvi nele o mesmo sonho dos meus amigos no Brasil. Apesar da distância geográfica e das diferenças históricas, compartilhamos uma realidade de luta semelhante, e até mesmo a estética, que vemos sendo apropriada globalmente, tem trajetórias similares nesses diferentes contextos de globalização no mundo capitalista. Voltando ao Brasil, percebemos como o conceito de nação nos coloca automaticamente em oposição a figuras e influências internacionais, sem uma análise crítica sobre o que significa ser brasileiro.

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Matéria Gazeta do Povo, 2018.

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Matéria O GLOBO, 2012.

Por que devemos sentir orgulho de nossa nacionalidade? Por que nos incomoda tanto quando um estadunidense expressa orgulho pela sua? A ideia de nação, afinal, não é algo natural ou eterno, mas uma construção relativamente recente na história humana, surgida entre os séculos XV e XVIII,a ideia moderna de nação, associada a um povo que compartilha cultura, língua e identidade política, se consolida com o Iluminismo e as Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789), os estados europeus, como Portugal, Espanha, França e Inglaterra, justificavam suas expansões coloniais com discursos que reforçavam a identidade nacional, a superioridade cultural e a "missão civilizadora". Essa ideia foi essencial para consolidar a identidade nacional em oposição aos povos colonizados, muitas vezes vistos como "outros" a serem dominados.Além disso, o Brasil que a periferia vive não é o mesmo Brasil que a elite ou a classe média experimentam. A democracia e os direitos que, em teoria, nos são garantidos, na prática se manifestam como violência e exploração para as classes mais baixas. Desde o nascimento, essas são as únicas certezas que temos em relação à atuação do Estado em nossas vidas. Dentro desse contexto de desigualdade, a estética da periferia se desenvolveu como uma resposta à opressão. O desejo por determinados produtos e marcas está diretamente ligado ao que nos foi negado e ao que criamos a partir disso. Muitas das marcas que hoje fazem parte dessa identidade estética – como Oakley, Mizuno (São Paulo) e Lacoste – foram incorporadas à cultura periférica justamente por meio desse processo de ressignificação.

DA OPRESSÃO À HUMANIZAÇÃO: A APROPRIAÇÃO CULTURAL E A LUTA POR LEGITIMIDADE

Atualmente, a estética periférica, especialmente na região Sudeste, está em ascensão nos territórios de consumo. Esse fenômeno abre espaço para que marcas e empresas se apropriem dessas narrativas, transformando expressões culturais genuínas em produtos que buscam validar uma história falsa. A arte, enquanto parte da cultura, está aberta a todos, mas o problema surge quando sua apropriação se dá de forma comercial e descontextualizada, esvaziando seu significado original. Nesse cenário, é importante que desenvolvamos um olhar mais crítico. Em vez de atribuir a responsabilidade exclusivamente a empresas ou indivíduos, devemos analisar os fenômenos sociais e econômicos que levam a essas dinâmicas. Só assim poderemos compreender, questionar e transformar a forma como a cultura periférica é vista e explorada, dentro e fora do Brasil.

Nos últimos tempos, casos de apropriação cultural têm gerado discussões, e podemos destacar alguns exemplos que ilustram bem essa problemática. Um caso que ganhou bastante atenção foi o lançamento de um tracksuit pela marca Palace, inspirado no uniforme da seleção brasileira de 2002. A reação imediata de muitos brasileiros foi de "cancelamento" da marca, acusando-a de apropriação cultural, pois a estética das roupas de time e esportivas no Brasil está profundamente ligada à cultura das favelas. Essa estética, por pessoas de fora da periferia, começou a ser valorizada recentemente. O problema nesse “cancelamento” foi a falta de pesquisa e bom senso. A Palace não é uma marca nova, e seus produtos não surgiram de uma tentativa de apropriação cultural. Pelo contrário, a marca tem suas raízes no skate  mas também no seu amor por futebol e, mais de 10 anos atrás, foi uma das primeiras a trazer essa estética para o streetwear de forma consistente, não apenas com produtos pontuais como outras, mas com uma linha contínua de peças que reverenciavam, por exemplo, as camisetas do Fluminense, em uma colaboração com a Adidas, ainda na época de Thiago Silva e Marcelo, colorway do Brasil com a Umbro, etc.

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Membros da palace usando Umbro x Palace unreleased colorway em meados de 2012/2013.

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Marcelo e Thiago Silva treinando no Fluminense, 2006.

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Palace  x Adidas camiseta  Couple Style Orange Red GL7170, 2020.

Enquanto isso, no Brasil, as marcas de streetwear ignoravam essa estética até que ela começou a ganhar popularidade fora das comunidades periféricas. Um excelente exemplo são os óculos da linha X-Metal da Oakley. Quando a identidade das periferias de São Paulo começou a se formar visualmente, o uso desses óculos estava diretamente associado. Antes dos termos "mandrake" ou "chave", existia o "funkeiro". Lembro que, quando usava uma Juliet ou uma Penny falsa na época da escola, as pessoas automaticamente me chamavam de funkeiro. Esse rótulo não se limitava a definir meu gosto musical, mas também servia como um marcador implícito da minha origem. Com o tempo, vi um objeto que para mim tinha o poder de elevar a autoestima, ser ressignificado. A Oakley, que um dia foi ridicularizada por certas camadas da sociedade, tornou-se um verdadeiro símbolo da estética brasileira. O que antes era considerado "feio" pelas mesmas pessoas que hoje o adotam, agora é desejado e legitimado. As mesmas marcas que antes desprezavam essa cultura passaram então a se apropriar dela, como se lhes pertencesse. Sabemos que não é o caso.

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Entrevista dada a Record pelo Mc Neguinho do Kaxeta após morte do Mc Duda do Marapé, 2011.

(Atenção para a legenda da matéria)

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Mc Juninho Jr gravação do clipe "Como era bom" 2011.

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Mc Juninho - Medley 2011.

Voltando para o contexto de Palace e tracksuit da seleção, surgem novas disputas narrativas. A Corteiz, por exemplo, criou um “conflito” com a Palace, alegando ser a única legítima para produzir tracksuits e outras peças inspiradas na estética periférica. A tensão aumentou quando a Corteiz se referiu à Palace como “gringos” em uma publicação no Twitter, reforçando a problematização do caso.

Um segundo exemplo relevante ocorreu quando o fundador da Piet, uma marca de streetwear brasileira, entrou no debate criticando Clint e a Corteiz, acusando-os de se apropriarem de uma cultura que não lhes pertencia. Ele argumentou que a estética promovida por Clint era homogênea para os brasileiros e que ele, por sua vez, não fazia parte desse contexto. Até certo ponto, a crítica parecia válida, mas o que precisamos analisar é o que acontece dentro do próprio território brasileiro. Ao discutir apropriação cultural, não podemos nos limitar às consequências; é essencial também questionar as causas que sustentam essa dinâmica.

No caso da Piet, por exemplo, a marca passou a explorar estéticas periféricas e subculturas que antes não faziam parte de sua identidade. Na busca incessante por construir uma cultura em torno de suas marcas, muitas empresas de streetwear tentam forjar identidades e narrativas que as conectem ao público. Esse esforço reflete a essência do próprio streetwear, que nasceu como um movimento de rua, enraizado nas expressões culturais das periferias e não em ambientes elitizados. No entanto, essa apropriação muitas vezes ignora ou distorce as origens autênticas do movimento, transformando-o em um produto esvaziado de significado. Um exemplo disso são os bonés e bermudas de veludo nas cores do reggae, estética que se consolidou nas favelas de São Paulo, influenciada pelas bermudas da marca Cyclone. Embora a Cyclone tenha surgido voltada para o surf, quem a popularizou e ressignificou foi a periferia, que, paradoxalmente, segue sendo marginalizada no estado de São Paulo. 

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Bermuda de veludo com as cores do reggae, da marca Piet.

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Bermuda Cyclone, nas cores do reggae.

Outro exemplo de apropriação interna é o fenômeno dos bonés de crochê, que se tornaram um dos maiores símbolos das favelas paulistas. Nos anos 90, para ter um desses bonés, era preciso ter sido preso ou ter um parente no encarceramento prisional, já que eles surgiram nas cadeias como uma forma de reduzir penas, tornando-se um símbolo de resistência. Hoje, no entanto, marcas como a Piet e outras se apropriam dessa estética sem compreender seu peso cultural. O boné de crochê vai muito além do produto em si: ele carrega um simbolismo de violência, opressão e enfrentamento ao sistema.

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Mc Duda Marapé, cantando "Caí lágrimas"  meados de 2005.

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"Libanês, Inimigo do Sistema" acervo pessoal, 2021.

Jalil Muntaqim.

Seu uso é uma manifestação de resistência, algo que muitas dessas marcas ignoram ao transformá-lo em uma mera tendência.

A grande questão é: por que empresas como a Piet sentem necessidade de explorar essas estéticas e narrativas, que nasceram em meio a uma história marcada pela violência, quando, até cinco anos atrás, ninguém demonstrava interesse? Precisamos analisar criticamente o fato de que, quando essas marcas “creditam” os artesãos, isso não é um grande mérito, mas apenas o mínimo que se espera. Não podemos tratar o mínimo como se fosse o máximo. Marcas como a Barra Crew, por exemplo, utilizaram a técnica do crochê na confecção de bonés, mas sua abordagem foi mais técnica do que cultural, criando uma distinção clara entre apropriação e respeito genuíno pela cultura.

Esse processo de apropriação pode ser compreendido a partir do conceito de Fanon em Os Condenados da Terra, no qual ele descreve como tudo o que é produzido pelos oprimidos é desvalorizado até ser apropriado e legitimado pelo opressor. Segundo Fanon, esse fenômeno reflete a internalização da inferioridade pelos próprios oprimidos, que só veem suas práticas culturais validadas quando aceitas pelo sistema dominante. Dessa forma, a apropriação cultural não é apenas uma questão estética, mas também política. Ao definir o que é belo, legítimo ou aceitável, o opressor reafirma sua dominação e molda a identidade dos oprimidos.

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Breno Altman entrevistou Jalil Muntaqim, militante do Partido dos Panteras Negras e do Exército da Libertação Negra, 2021.

Uma das características desse processo é a exploração de determinada pauta, sua transformação em produto com uma narrativa artificial e sua venda aos consumidores, mascarada de apoio à comunidade, porém sem crítica ou qualquer ação concreta em relação à causa daquela situação, apenas a capitalização de suas estéticas e narrativas,Algo que foi extremamente criticado em meados de 2021, quando diversas empresas com históricos de exploração e segregação racial começaram a produzir camisetas "Black Lives Matter" para venda no mercado, me lembrou da entrevista dada ao Opera Mundi por Jalil Muntaqim, ex-militante do Partido dos Panteras Negras e do Exército de Libertação Negra, em 2021, onde falou de forma mais ampla e crítica sobre o fenômeno. Hoje, 90% dos consumidores da Geração Z acreditam que as empresas têm a responsabilidade de abordar questões sociais, segundo um relatório da Porter Novelli (2021). Além disso, 86% da Geração Z defende que as marcas devem se posicionar sobre questões sociais, de acordo com uma pesquisa da McKinsey (2020). Outro dado relevante é que 72% desses jovens estão mais propensos a comprar de marcas que promovem diversidade e inclusão, especialmente de grupos em situação de vulnerabilidade, como as pessoas das periferias, conforme aponta um estudo do Pew Research Center (2021).

Esses dados, porém, revelam uma contradição: as narrativas de justiça social são rapidamente cooptadas e transformadas em demanda de mercado. Em uma sociedade onde "somos o que consumimos", comprar de uma marca que explora simbolicamente e materialmente grupos vulneráveis torna o consumidor cúmplice de um ciclo perverso? O capitalismo, em sua astúcia, coloca o problema sobre a mesa e oferece uma "solução" enganosa: o consumo consciente, uma resposta puramente moral — nunca material — às desigualdades. Afinal, o sistema não tem interesse em erradicar práticas opressivas; sua lógica depende da manutenção dessas contradições. A própria ideia de capitalismo consciente é uma contradição: a exploração não é um defeito do sistema, mas sua engrenagem fundamental.

Nesse contexto, nossa missão ultrapassa a escolha individual de consumo. É urgente desnaturalizar a ideia de que justiça social se resume a comprar bem. Precisamos questionar quem se beneficia quando a luta contra a opressão vira um nicho de mercado e construir estratégias que ataquem as estruturas — não apenas seus sintomas. Como romper com a lógica que transforma até a resistência em commodity? Como transcender a armadilha do "ativismo de prateleira"? Eis o desafio que permanece.

A verdadeira luta, portanto, não é apenas contra a apropriação cultural, mas contra as condições que fazem com que essas culturas sejam sistematicamente desvalorizadas até que sejam “validadas” pelo sistema dominante.

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